sábado, 14 de setembro de 2024

O Auto da Utopia

Dramaturgia (Ponto de vista poético)
🎬

À’venida fria e vazia, 
Corpo ia.
Alma esvaia.
Outra lá, todavia,
Sob o viaduto, dormia.
Perpendicular via.
Ecoavam seus passos, sozinha.
Calado via tudo o cálido dia.

(Calado viaduto num cálido dia)

À’venida sombria,
Corpo guia.
Alma’trofia.
Lá, súbita fol(h)ia,
Sob o viaduto, anuncia:
Vai ventar a ventania.
Assoviando “passagem é minha!”
Fez palco e, do viaduto, coxia.

À’venida Real distopia,
Corparalisia.
Almagia.
Espetáculo! Maestria!
Sob o viaduto, exibiatraia.
Heros? Ágape? Filéo? Epifânia!
Ele, o rei! Ela, a rainha!
Em cena: “O Auto da Utopia.”

À’venida alegoria,
Corpo urgia.
Alma orgia.
Deus na língua da ironia,
Sob o viaduto, trapos vestia.
Pés descalços, pele sépia fotografia.
Afiada espada sem bainha.
Pobres humanos, divina ousadia!

À’venida alforria,
CorPoesia.
Almascendia.
Carruagem-carrinho de mercadoria,
Sob o viaduto, nobre rapaz conduzia,
El'asciva c'o fruto da sabedoria.
Profano enigma, sagrada adivinha.
Riam como deuses, sem liturgia.

À’venida paradoxia,
CorpOlaria.
Alma elegia.
O espetáculo da corte(s)ia,
Sob o viaduto, sem fim, findaria.
Na voz de Kairós, a profecia:
O Amor são tortas linhas!
Pelo Chronos duto, Odissei-se-ia.

A perfeita física fotografia 
📸

Encontrada no Google no Flikrs
Por Mateus Waechter
Viaduto da Silva Só com Protásio Alves, Porto Alegre

Dedicatória 
🖋️

Escrevo para as almas leves levadas por passos que ecoam melancólicos nas estradas, avenidas, ruelas. O que mais o corpo pode fazer por elas? Que ato será tão empático quanto o caminhar? Talvez ler - alguém dirá. E ler o mundo ao seu redor é menos rico do que ler as páginas de um livro? Se palavras escritas dão asas às nossas almas, saibam que caminhar é um ato de voar, é ler os símbolos e signos, os significados, do alto do corpo o olhar experimentando, o não envolver-se, somente o expectar, observar, absorver, sublimar. 
O corpo apaixonado por sua alma a leva pra passear. 

A história
👁️‍🗨️

Caminhava de volta pra casa, por uma larga avenida de Porto Alegre, Avenida Goethe, bem cedo, num desses domingos de fim de inverno em que a cidade parece abandonada, uma cidade fantasma. Ouvia meus passos vibrando eco entre os prédios, enquanto me aproximava do Viaduto da Silva Só, para subir a Protásio Alves em direção ao Bairro Alto Petrópolis. Nem carros disputando espaço, nem pessoas com seus cãezinhos, nem sirenes anunciando tragédias, eu inteira e mais ninguém. Andava com o olhar perdido na direção do nada, pensamentos vagos, pouco pensava. Lá na frente, o vão do viaduto sobre o caminho de volta.
Foi de repente, uma só cena, rápida e curta, era o inusitado, tremi, parei meus pés e, impactada, ampliei a visão. Contemplei, então, em câmera lenta, do início ao fim, fotografei em detalhes. Está aqui.
Sob o vão do viaduto, um pequeno redemoinho de vento surgiu, levitando folhas e sujeira, ignorei, não sou boa amiga do vento. Segundos depois meu olhar foi atraído para um carro que descia a avenida por onde eu subiria em poucos passos, mas não um carro qualquer, era um carrinho de supermercado. Vinha empurrado por um rapaz maltrapilho que se ria enquanto dirigia, e ria pra ela. Uma moça também maltrapilha que, dentro do carrinho, sentada de pernas cruzadas, também ria pra ele e mordia uma maçã. Eles riam muito, um para o outro e ambos para o todo. Debochavam da vida, eram os donos da avenida. Qual carro seria melhor do que o deles ali? Qual maçã seria mais gostosa que a dela naquela hora? Qual amor, seja qual for, seria mais real e Real do que aquele que espetaculavam diante de mim? Eles não careciam de mais nada. E eu, que de carência transbordava, também não quis mais nada. 

Fotografia (O negativo)
🎞️

Fotografei com os olhos e, há quase exatos 14 anos, guardo o negativo na alma. Chamo assim, porque lembro de todos os detalhes como uma imagem congelada, de cor sépia, os movimentos são secundários, são elementos de uma essência vital que permanece, em cada quadro daquela imagem. 
De tempos em tempos, entro no meu Laboratório Verbomágico e procuro ferramentas humanas para revelar o sublime, missão quase impossível. Enfim agora, nas últimas duas semanas, alcancei a essência que faltava. E finalmente pude escrever o quê e como vi. 

De Porto Alegre, final de setembro/2010 até Garopaba, início de setembro/2024. 

Vindos